A Maravilha #16



Nós de . Nó Górdio. Nó de Cirurgião. Nó Lais de Guia Duplo. Nó Autoblocante. Lista de nós. Na verdade só se quiser aplicar numa carreira marítima. Embarcação ligeira ou de recreio. Não queremos nós, nem falsos nós. A palavra foi respigada por necessitar de uma lavagem. Apenas isso. Pois, uma náusea acontece na fonética: Nós? Mas há mais Nós sem ser os dos marinheiros? Há pelo menos um ao qual devemos prestar atenção. E esse foi escrito no início do século XX e, portanto, antecipado nas utopias construtivistas. Para Zamiatine a palavra Nós é uma estrutura bem montada nascida de um dispositivo panóptico, ainda assim, sujeita a descarrilamento. “Primavera. De lá de trás do Muro Verde, das planuras selvagens que escapam à nossa vista, o vento traz-nos o pólen amarelo e melífluo das flores. Este pólen seca-nos os lábios; temos de passar constantemente a língua pelos lábios e, muito provavelmente, todas as mulheres por quem passamos têm lábios doces (e o mesmo sucede, naturalmente, com os homens). O que perturba, em certa medida, o pensamento lógico. (...) — Desculpe – disse ela -, mas vejo-o olhar para tudo com um ar tão inspirado...como o Deus mitológico do sétimo dia da criação. Pelo que vejo, está convencido de que foi você e não outro quem me criou a mim, facto que muito me lisonjeia.” Não queremos nós a não ser para embarcações e marinheiros e pescadores que os fazem essenciais e bonitos. Chega e sobra morar em frente ao porto de atracagem.

A Maravilha #15


[...] A imagem tem o título "bloqueio". Legenda: "Tenho febre e escrevo. Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, (...). Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, De vos ouvir demasiadamente de perto, E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso, De expressão de todas as minhas sensações, (...). Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferrando, Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma." [...] de Álvaro de Campos. 

A Maravilha #14


Corpo cósmico — de proximidade em proximidade, o meu corpo toca em tudo: As minhas nádegas na minha cadeira, os meus dedos no teclado, cadeira e teclado na mesa, mesa no chão, chão nas fundações, fundações no magma central da Terra e nos deslocamentos das placas tectónicas. Se parto na direcção oposta, através da atmosfera chego às galáxias e por fim aos confins ilimitados do Universo. De Jean-Luc Nancy (in, Cinquenta e oito indícios sobre o corpo)

[…] Num sentido oposto a esta lógica "arqueológica" pode-se descrever a produção de imagem em três categorias: a descrição “analítica, abstracta, e processual”, (Martin Kemp). A descrição “analítica” refere a imagem como sendo produzida pela “re-presentação” literal baseada no entendimento óptico da natureza — a representação do real que usa o sistema de projecção da perspectiva linear, a descrição racional da luz e da sombra, assim como, a modulação da cor como ferramentas. A descrição “abstracta”, atribuída à ciência moderna, inclui a introdução de aparelhos que medeiam e potenciam o sentido visual — o raio-X, o microscópio, os infravermelhos, a fotografia, etc. — aparelhos que permitem ver o que era inacessível ao olhar. Descrição que propõe o corpo ao serviço da experiência aparelhada encerrando “aquilo que é visto” segundo a especificidade da intenção do olhar que mecaniza. A descrição “processual” é relativa à imagem constituída, a priori, fora de um sistema determinista — quando o olhar atinge o limite da matéria as concepções anteriores alteram radicalmente sobre a exigência de um outro corpo. A imagem de descrição “processual” apresenta o debate sobre a computação que reclama a dimensão visual para a matemática avançada. O caso da matemática fractal, tal como a Teoria do Caos que definiram padrões para sistemas imprevisíveis não se vê livre de uma política de controlo que se pretende realizar na formalização de códigos que autonomizam “o corpo”. Mas, esta última descrição coloca o corpo permeável à permanente interferência, um corpo improvável e não causal que se constitui na rede informática, na intimidade técnica. Então, a descrição “analítica” parece “scanerizar” a superfície, enquanto a “abstracta” entra pelo corpo dentro. A designada por “processual” descobre a instabilidade, o movimento, o corpo em ligação.
Em “profundidade” e através de escalas o “olhar” relaciona-se com estas três categorias para o “corpo”— pelo menos desde que a imagem aparece da conversão do desconhecido invisível para a verdade do visível, até à conversão da matéria orgânica em inorgânica, da carne em números, da realidade em virtualidade — a necessidade de definir “três modos para olhar o corpo” relaciona-se com a descrição da respectiva imagem na altura do seu desvendamento e conversão, sendo assim, o “CORPO MACRO” é concomitante da “descrição analítica”, o “CORPO MICRO” da “descrição abstracta” e o “CORPO NANO” da “descrição processual”.Todos eles potenciais “corpos controlados”. Resta o desvio e a crítica.

A Maravilha #13


[...] 23 indícios para (des)armar. 


1: Zona de colocação da mão que dispara, também conhecida por “zona da carne I”. 2: Protecção do cano por onde passa a bala. Ou cano. Ou amparo de velocidade. 3: Placa metálica tridimensional de forma irregular. Segurança da alavanca contra disparos improdutivos. 4: Roleta Russa. 5: Mini-alavanca sobre pressão. 6: Depósito ou arquivo. 7: Estranho mecanismo de conta relógio. Movimento necessário para a prática da “Roleta Russa”. 8: Tiro. 9: Accionamento, ou “zona da carne II”. 10: Ligação entre o “tiro” e o “sistema de alavanca maior”, primeira parte. 11: Travão. 12: Ligação entre o “tiro” e o “sistema de alavanca maior”, segunda parte. 13: Conchego de embate. 14: Caixa-de-ar por onde circula a energia. Tlin. Tla. 15: Canal de envio de pólvora. Tráfico. 16: Inclinação recortada de um plano de ferro que serve de encaixe. 17: Junta-forte. 18: Ponta de trás da alavanca. Ou popa. 19: Canal vertical na ré. 20: Canal horizontal na ré. 21: Prega. 22: Placa sobreposta do canal horizontal na ré. 23: Sólido irregular de sustento da junta-forte.

A Maravilha #12


Outro tipo de recortes no plano. A cognição da medida ovnilógica não pode ser deixada de lado, pois durante os anos 60 e 70 foi fruto de raras e expectantes metodologias de investigação que se experimentavam para lá dos laboratórios autorizados. Provavelmente nessa altura os laboratórios, pelo menos em Portugal, não seriam assim tão regularizados. Se pensarmos nem mesmo hoje, exceptuando aqueles que permanecem ligados a grandes instituições. Para a investigação científica a lei deste país ainda tece um solo paradisíaco. Continuando, apesar de inventora de “método”, a ovnilogia falhava e falhava. Nada diferente e tal como se processa no espaço de clausura do laboratório. Mas enquanto a maior parte da ciência fecha a natureza e suas anomalias no sítio céptico, a ovnilogia parte para a busca de fenómenos estranhos nessa natureza. Já não a razão da ontologia dos fenómenos verdadeiros e credíveis, antes a procura e registo do aparecer nos fenómenos que literalmente transcendem a terra e principalmente o “humano”. É certo que os “extra” têm sempre uma formalização antropomórfica, mas isso é nos “filmes” que buscaram inspiração à vocação destes senhores. Foi um amigo que me fez chegar isto sobre os avanços portugueses. Explore primeiro. A explicação e discussão dos factos, tipo Fátima e etc., como show extraterrestre não interessa. Esta ciência trabalha declaradamente neste sentido: da desmistificação para o novo mito. Ou seja retira, muitas das vezes, um valor substituindo por outro. Não parte da crença de deus, parte da crença sobre a complexidade e vidas do universo. Não interessa a factualidade e a verdade objectiva sobre este mundo. Interessa a procura de uma metodologia pronta para sondar, não esquecer estar nos sítios à hora certa, e à mínima suspeita montar todos os engenhos e dispositivos de detecção e de registo. Existem vários grupos de investigação nacionais e internacionais e publicações que ora esgotaram nos anos 70 ora continuaram numa vertente mais científica, cujos nomes estão entre “Grupo de estudos e informações sobre os fenómenos aeroespaciais”, “Céu e espaço”, “Grupo de investigação de elementos relativos da vida extraterrestre”, etc. Interessante perceber que nestes estudos se reúnem áreas díspares, entre a astronomia às ciências sociais, que trabalham na reunião e verificação das testemunhas e na constituição de arquivos e guarda de registo dos fenómenos, procurando o relatório inconclusivo e “não identificável”. A averiguação da simulação desses “apareceres” é hoje imperativa face aos recursos tecnológicos actuais. Ainda assim o interesse maior é que estes estudos rigorosos se desenvolvem num escape à ciência. Apesar de muitos dos seus contribuintes serem cientistas. Antoine Augustin Cournot (1801-1877) não tem nada a ver com isto mas introduziu um conceito que talvez nos leve a outra compreensão do escape das agarras da racionalidade objectiva. É irresistível neste ponto não anotar a ideia que contribuiu para o entendimento dos recortes dos limites das implicações deterministas da ciência e da metafísica na afirmação de uma visão mais moderada. O “acaso objectivo” que influenciou muito da filosofia francesa, tanto da natureza como da vida orgânica e do espírito, foi central e se nos esforçarmos compreenderemos que a própria arte do início do século XX se viu fascinada com este “acaso”, bastaria lembrar o “compêndio de geometria” de Duchamp e também da confiança depositada pela vanguarda artística na performatividade surrealista desse hasard objectif (Breton, 1928). Para os surrealistas o “acaso objectivo” diferia do “acaso subjectivo”, logo o primeiro provocado e o segundo arbitrário, mas ambos estariam na propensão do abandono ao material. Provocar e assinalar o acaso seria uma forma de assistência declarada aos fenómenos imprevistos de uma sociedade regulada pelo limite da “racionalidade dos fins” (Bürger,1973). A provocação do excepcional e o domínio do acaso revelaram ser as ferramentas de contra-projecto para a constituição de uma “mitologia moderna” que se encontra na realidade ou a partir dela. Não podendo ser determinado, pois assim seria rapidamente absorvido pela racionalidade dos fins, o acaso surrealista é inapreensível, usando os termos de Bürger, e alienado da necessidade de alguma organização, ao ponto de paradoxalmente opor-se ao social. A liberdade estaria na excepcionalidade e nas maravilhas recortadas do quotidiano heterónomo no qual dominava a ordem burguesa. É a partir daqui que se pode compreender a patafísica como limite, ou se quisermos, por outro lado, o pessimismo de Marx e Engels. Adorno (1970) chegou a colocar o acaso na performatividade da obra de arte em vez da realidade. Nomeando de “acaso mediado” aquele que é fruto do cálculo. Ainda assim um cálculo que seria o meio em vez do efeito: este último continuaria a ter graus de imprevisibilidade.

A Maravilha #11


Passos em volta da mesa de jantar uma outra conversa. A mesa é um sítio horizontal no qual as pessoas debruçam, os braços e as mãos, e se dispõem a praticar exercícios de reductio ad absurdum. Sem ser a versão matemática, exemplos visuais acima, comecemos por esta versão: a "redução ao absurdo como um método irónico que visava ridicularizar uma doutrina adversária pela demonstração da falsidade de uma proposição levada até ao extremo das suas consequências." Se é que há doutrina. E demasiado lógico e por isso possível de ser equacionalmente demonstrado. Talvez seja melhor o exemplo de Sísifo: “para Sísifo, o alto era o eterno esforço, o alto não era nada e, por mais que entregasse a pedra, ela cairia no baixo para de novo ser trazida ao alto. Motivo de uma profunda decepção com as referências e os modelos, (...)." blá, blá, blá. Ao jantar foi servido esparguete fresco envolvido por gambas banhadas em vodka. Não, era gin. Especiarias. Como ir para lá da repetição deste tipo timbre de um movimento tão ritmado? Cima, baixo. Acima, abaixo. Já se imaginou a largar mal a pedra no alto e ser esmagado enquanto tentava desviar-se em direcção ao baixo. Para acompanhar vinho branco, tinto, e alguma limonada. O alto não era nada, mas continuava a ser tudo. Se à descida o atropelasse era o baixo que seria tudo, pelo menos o corpo restaria no chão. Solo de divindades. A inutilidade. Já falamos de Beckett. Apontamentos. Ainda não terminou a acta.

A Maravilha #10


[...] A escrita não tem cronologia. Ou este espaço não pretende seguir qualquer padrão cronológico numérico, mas antes uma cronologia afectiva. Não é contextual, não obedece a um estado real. Antes o roça, antes o queima, antes o trata sem delicadeza. Também o contrário, espero. Propor. Dispor. Criticar. Fazer pequenos recortes nos diferentes planos. Um plano enorme é impossível, possível apenas estender, olhar, estar nele. Muitos planos estendidos a fio, muitas estratégias de extensão tecidas, muitas teias de poder localizadas, muita técnica para tudo fazer. O bisturi, li num sítio, talvez seja o primeiro instrumento que mostra o interior sob mandato do olhar armado que quer ver e investir o corpo. Os cortes bisturianos dos planos não pertencem ao nosso olhar. Os recortes que convidam focos para ajudar na arqueologia da operação são enfatizações de pormenores cerebrais que revertem e localizam nesse plano. Quantos planos recortamos? O olhar e o pensamento são estroboscópicos. O cérebro é sempre uma raiz que desmonta noutras. E outras. Alguém já disse rizoma. Tudo isto me leva à peça Play de Samuel Beckett. Recorte de figuras e recorte de linguagem. Recorte de afecções. Os focos iluminam a figura e a linguagem que se pronuncia a seguir. Os focos no filme que depois foi feito foram substituídos pela câmara de filmar. Numa primeira volta não se percebe o que dizem. Estão quase em operação directa de recorte. Mas não. Engana. Metodologicamente estruturado o recorte no plano. A técnica é o compasso da linguagem. Toma e dá o tempo da voz. Autoriza. Mas o relacional apenas se cruza e se mistura na linguagem. Um dá conta do outro assim. O corpo efectuado naquele bidão musgoso continua a ser em si um só. Extrapolação e recortes observados agora pela câmara capaz de nos dar as rugas.Cuidado. Verdete. Quando o olho pisca, como se vê, é estroboscopia ou histeria pura, e nada significa. Já não aquele gesto sensualista... estas figuras não têm gesto, são o espelho da máquina, enquanto corpos. O grito afasta e desenha o vórtice de rompimento.

A Maravilha #9


As coisas começaram por ser duas. Duas imagens que ora se repetem ou não. Depois dois olhos não foram suficientes e multiplicaram-se. Por enquanto quatro que derrapam o olhar para lado nenhum. O contra-senso é necessário para compreender isto tudo. Os invisuais nunca poderão aceder. Mesmo aquele esquema com um X é para visuais. Ou para aqueles que não querem ver. Cruzar texto com imagem é irresistível, é mesmo um facilitismo. Aqui as imagens muitas vezes não ilustram, enquanto outras falam apenas por si. Muitas não são imagens de hoje. Da maior parte não sei do contexto nem da sua história. Talvez as palavras certas sejam apropriar, reapropriar, realizar, reactualizar, tudo isto sem fantasiar ou entreter. Uma necessidade de escrever e de reagrupar a história das imagens parecida com o mnemosyne atlas de Aby Warburg. O interesse estará na ideia de arquivo. Arquivo de texto e de imagem. Pensamentos talvez. A vontade de escrever cresce por vezes das leituras das imagens seleccionadas, ou de coisas de maravilha que ampliam a experiência e o pensamento. O que fica a martelar enquanto não se registar. Pode fugir. E lá vai, nunca mais se apanha. Exercício de memória, portanto. Esta maravilha é uma continuação mais descritiva da #1. Continuemos então com a saga estereoscópica. A verdade é que apenas um olho chegava.

A Maravilha #8


[...] A natureza imprevisível dos produtos tecnológicos faz com que as acções da indústria sejam mais voláteis do que as de outros sectores, o que coloca muitos obstáculos ao investidores. Até rima. Não quer dizer que estas imagens sejam da ordem do justificativo, nem tão-pouco da descida da cruz. O assunto foi real, a fotografia não parece. Lembra aqueles quadros que surgiram quando os primeiros foguetões levantaram da terra, como se fosse possível um pintor de paisagem estar no preciso momento da deslocação, e para além de estar nele fazer o registo preciso dessa ascendência. Que bonito. Mas aqui o movimento, sim chamemos movimento, é descendente. O Movimento. Alguém já disse isto “Não o prazer, não a glória, não o poder: a liberdade, unicamente a liberdade. Passar dos fantasmas da fé para os espectros da razão é somente ser mudado de cela.” Do que poderá ter ali acontecido não teve a ver com estas ordens, somente teve a ver primeiro com um olhar que olhou e disparou. E depois esta seria a terceira capela (1906) a ser construída na vila. Por entre a destruição das anteriores, e as complicações de posses, este exemplar não foi definitivo — poucos anos depois foi tragada pelas ondas do mar.

A Maravilha #7


Entre quatro falávamos de neoespiritismo. O intolerável. A conversa iniciou sobre as aspirações do yoga e as histórias ambíguas do resultado de intervenções nas práticas. Cada um teve a sua experiência. Cada um sabia, de facto, de múltiplos casos onde pessoas de repente se integravam e reuniam em grupos e retiros marcados nas áreas geográficas de potente densidade magnética, quer dizer, próprias para exercer e ditar a espiritualidade ocidentalesca. Chegamos à conclusão que as palavras chaves destas procuras e encontros eram, entre muitas, harmonia + equilíbrio + paz. Desde que o nosso espírito passou a acreditar na cientificidade que o homem empenha para explicar o mundo aparece a carência de religiosidade. Mas é preciso não esquecer que as procuras que falamos, apesar de se afirmarem como alternativas, sim, esses encontros em montanhas próprias e também no Brasil, terra santa, ou então, daqueles que decidiram à última hora salvar o mundo, etc.; portanto, é preciso não esquecer que estas ditas crenças caminham no mesmo sentido do projecto de melhoramento do homem. Alguma vez o espiritual foi harmonia? Nós não somos muito peritos nisto. Continuou a conversa. Recentrando o problema, importa pensar como dirigimos a religiosidade que ainda resta. Olha, soube-se de um imigrante em Inglaterra que mantém um ritualismo exacerbado ao Noddy. À sua imagem e personagem. Aos seus olhos e seus ditos. É mais cabida, (...) esta aplicação da necessidade de ritualização ancestral numa localização e num país diferente. Em contra partida ao falso espírito que tem vindo a aumentar nas nossas terras, não o do Noddy, mas daqueles que se dizem mais espirituais e dignos de alternativa, e que não passam de forçar a ejaculação de prazer de se ver ao espelho na falta de fortes experiências. Alguém lembrou na conversa do já conhecido Cargo Cult, que convido a pesquisar mais profundamente. Cargo não é mais do que o primeiro símbolo estranho que aparecia e desaparecia nos céus. Um pássaro branco que soltava mantimentos sobre uma ilha. Que quando aterrou deixou um homem diferente – um homem nascido de um pássaro ruidoso. Para os habitantes da ilha o avião militar era um órgão de promessa ancestral. E se não era passou rapidamente a ser: Cargo escrito no peito, fardas militares coloridas, gestos e marchas, armas feitas de galhos ao ombro, pequenas fogueiras que desenham as linhas de zona de aterragem, avião de palha, e muito mais. E agora? Estamos a falar de quê quando julgamos ser praticantes de rituais místicos? Sobre isto convido a ver o documentário Les Maîtres Fous  de Jean Rouch, uma sugestão que saiu de uma outra voz participante na conversa, afinal, já quase matéria para ensaio. Seguimos e terminamos averiguando a falta de religiosidade que temos. Uns ligados à intensificação da experiência, outros querendo descobrir e actualizar aquilo que resta de inexplicado pela ciência para fazer ruído e motivo de ritualização, outros deixaram simplesmente de ser capazes de religião. Também se chegou à conclusão que a experiência do espiritual, ou a procura dessa espiritualidade, é tudo menos harmónica e de virtudes equilibradas: principalmente quando se olha para outras cenas culturais mais dignas onde o ritual é decisivo. Pois ali é a catarse atingida pelo excesso, pela violência, em grupo, homens e mulheres, no corpo transe, em crise, em falecimento. É imperativo decidir, e isto implica uma averiguação e uma negação da falta de religiosidade que nos leva para caminhos bastante ambíguos, e encontrar essas coisas que escapam ao mundo racionalizado. Dispor para isso. Dispor nisso. Entregar e fazer aí. Crer. Mas sobretudo aí pensar.

A Maravilha #6


Laboratório onde se aplica essa técnica ancestral ritualizada em grupo.

A Maravilha #5

Técnica ancestral de aplicação a cabelos. Compridos. Ou muito compridos.

A Maravilha #4

“Roberto Calasso, (...), comentou que nesses seres que imitam a aparência do homem discreto e vulgar habita, no entanto, uma perturbadora tendência para a negação do mundo. Tanto mais radical quanto menos notado, o sopro da destruição passa muitas vezes despercebido (...)”, escreveu Enrique Vila-Matas sobre outros escritores que não foram. Esta maravilha quer pensar coisas muito simples, e uma dessas coisas é a urgência na demarcação da diferença entre “o trabalho em ser” e o “trabalho em querer ser” qualquer coisa. A citação fala-nos em ser o contrário, a negação portanto, mas localizando a perturbação no mais vulgar dos seres. Eis o interesse. Um ser despercebido aos outros, mas não de si, onde habita o mais radical sopro. O desassossego quer depressa implicar e mostrar a outros uma qualquer imagem do querer ser. Isso é tão falso e triste de ver que ao primeiro passo se perde a profundidade da luz que emana. Quando o ser é, o desassossego está contido em tudo. Não sei dizer melhor do que isto. Ou seja, transforma-se noutra coisa qualquer que tem o dom de não ser. O ponto onde a banalidade se torna no mais extremado. Mas a citação fala de “seres que imitam a aparência do homem discreto e vulgar”. O ser imita, portanto. É um ser querendo sempre ser, ou tentando sempre ser. Aqui o trabalho continua a ser o do ser em ser, querendo sempre ser, no sentido inverso do trabalho em querer ser algo. Uma imagem, por exemplo. Pede-se esta distinção porque a “banalidade” tem de ser progressivamente desconectada de “massividade”. Assim como do kitsch. (...), ou não.

A Maravilha #3


Este é o universo escorregadio de onde parte tudo. Na cozinha e sobre a placa do fogão branco jorrou café. Comecemos o ano por aqui, caldeirões de café que inundam a casa com um cheiro despertante. Despertem esses cérebros para os mais fugazes pensamentos. O café é uma maravilha. Hoje acordei assim. E hoje era daqueles dias que se ficava no sonho, pois, tinha de descobrir quem me feriu com a pistola na praça. Caí na armadilha. Fui levado em conversa por alguém até ao jardim de Atenas, Roma ou Marselha, onde de repente bombardearam. Descobrir nos olhos de quem me acompanhava que tudo aquilo tinha sido ensaiado para parecer acaso atingir-me. Desilusão. O sonho sem conclusão continuou para eu perceber o porquê deste ataque. Mas, esta maravilha serve apenas para elogiar o café que acompanha o dia e a noite. Desejo bons cafés para este 2008. Vou fazer uma italiana.

A Maravilha #2


[...] A tristeza é em todo o corpo manifesto. As bibliotecas estão cheias de tristeza, mas é esse um dos sítios quando se procura silêncio. Não o nosso, mas do mundo em volta. Enfim, isto é tudo menos triste. Às vezes o caos é tanto que nos leva com ele. Deve existir um caos negativo e um outro positivo, mas no fundo não interessa. O caos empurra para ele, e num turno é tristeza. Estamos fartos de partilhar risos e palmadas, lembro o riso sincrone de uma plateia ou aplausos num compasso certo. Yak! Como sempre há excepções, não deixa de ter a sua intensidade, e também dúvidas, será maior o estar num estádio de futebol cheio ou completamente vazio? Edgar Pêra filmou bem o estádio de fé, e provavelmente qualquer um de nós passou por essa experiência, e é no mínimo triste. Um estádio vazio, connosco apenas, é sempre aterrorizador. Embora ambos os casos pertençam à experiência contagiante e contemplativa. E ambos tristes. Para quê falar de tristeza, afinal? Tantos são os poetas que falaram melhor disso. É que quando o homem se confronta com os seus próprios sítios construídos, estejam cheios ou vazios, é tetris.

A Maravilha #1

[...] Não tem faltado ironias ao mundo contemporâneo. Nem crítica neste campo pessoalizado da internet concedido pela entidade “blog”. Agora, que todos temos a possibilidade de ter um canto nosso, que é sempre publicitário, afinal o que se diz e mostra aqui pode ser dito e apresentado numa conversa de café, num espaço, etc. O blog aproxima mentes que não se conhecem, por um lado, e por outro matiza uma espécie de “espírito burburento”, interessado em borrifar opinião para agregar um público maior que não é de todo anónimo. Vamos sabendo do inevitável sucesso do segundo género, ainda assim, estes são apenas dois tipos de acontecimentos nesta plataforma, pois, por entre o lixo vamos encontrando projectos que realmente rasgam esta sombrinha, permanecendo e lutando com o caos, sabendo usar a elasticidade deste modelo.
Sobre a opinião, veja-se no pensamento de Deleuze e Guattari:“As opiniões são formas pregnantes, como as bolas de sabão segundo a Gestalt, que dizem respeito a meios, a interesses, a crenças e a obstáculos.”
Partir, pelo menos, deste princípio. E deste fim radical:“ (...): a luta com o caos é apenas o instrumento de uma luta mais profunda contra a opinião, porque é da opinião que vem a infelicidade dos homens.”
Ou seja, “Dir-se-ia que a luta contra o caos não se passa sem afinidade com o inimigo, porque uma outra luta se desenvolve e ganha mais importância, contra a opinião que pretendia, no entanto, proteger-nos do próprio caos.”
Para finalizar, sobre a sombrinha = “os homens fabricam continuamente uma sombrinha que os abriga, no interior da qual traçam um firmamento e escrevem as suas convenções, as suas opiniões;”
Tudo isto, nos autores, trata-se de compreender a luta do pensamento contra a opinião e da degenerescência do pensamento na própria opinião. O sistema de opinião tem uma mecânica baseada no remendar, sombrinhas, brechas, rasgos no firmamento, para utilizar de novo uma expressão destes. Remendos que transformam as fendas em opiniões.