A Maravilha #20

Os Cristais, essas formações que se escondem no escuro da terra, são muito semelhantes à vida. Na tentativa de criar artificialmente Cristais, Andrew Crosse (1836), cientista amador, conduziu experiências que sujeitavam à electricidade certos minerais. Uma pedra do Monte Vesuvio  electrificada foi exposta a uma solução química durante semanas: primeiro apareceram pintas brancas na superfície da pedra, segundo emergiram filamentos dessas pintas, terceiro as pintas transformaram-se em formas irreconhecíveis. Ao convocar o microscópio para a experiência Crosse acabou por notar que essas formas eram insectos perfeitos: Acarus Electricus . Apesar de manter a sua experiência em sigilo laboratorial, o mecanismo de opinião anunciou que criaturas vivas estavam a ser sintetizadas da matéria inorgânica e Crosse foi imediatamente acusado injuriador da “santa religião”, perturbador da paz familiar e demente frankensteiniano. O herético eléctrico, também conhecido por “trovão” ou “relâmpago”. 

A Maravilha #19

Não é tetris (v. #2). É vertigem em dois sentidos. 1. A vertigem pode ser a sensação provocada pela armadilha que a natureza estende à razão humana. O observador é paralisado. Ainda assim existem os “discípulos da Natureza” que sentem sistematicamente a alegria de aprender e experimentar, elegendo com cuidado o fenómeno, “fixando com obstinação”. Talvez não seja ainda criação. Pois, e em reforço, “elegem especialmente e com todo o cuidado um fenómeno fixando com obstinação no seu espírito, que apresenta mil formas diferentes, os olhos.” E, “ajudados por esse fio condutor, percorrem todos os cantos do laboratório para poderem traçar o mapa dos caminhos do labirinto”. Os olhos. No entanto ou “apesar disso, o conhecimento da natureza será incomensuravelmente diferente da interpretação.” Provavelmente “o primeiro passo para se investigar tão gigantesco mecanismo já é o passo para o abismo, começo de uma vertigem que, não tarda, vai apoderar-se por completo do miserável e arrastá-lo consigo ao mais fundo de uma noite abominável.” Citações in Os Discípulos em Saïs. 2. A vertigem pode ser a sensação provocada pelas construções e operações das máquinas. O topo do tetris. Ou melhor, querer-se no topo. Na progressão.

A Maravilha #18

[...] É preciso não esquecer o que Vilém Flusser disse (in, A história do diabo 1965): “os astros são fenómenos temporais, como tudo neste nosso mundo dos sentidos. Com efeito, os astros são imperpétua mobília como as máquinas que nós produzimos.” Portanto, “não, a máquina gigantesca dos astros é obra do diabo. E o nosso parque industrial é sua prole tardia. Os nossos aparelhos são cópias aperfeiçoadas do padrão diabólico que aparece, todas as noites, acima das nossas cabeças.” Então, “O diabo não passará, doravante, de mera parte da criação, a saber aquela parte que torna sensível o mundo. (...): o diabo é, (no seu aspecto externo), o fluxo do tempo, graças ao qual os fenómenos aparecem.” = creator.

A Maravilha #17

“A humanidade não permanecerá para sempre presa à terra” (Konstantin Tsiolkovsky, 1857-1935). Esta bem poderia ser uma das frases base que impulsionou a “Nomenclatura Lunar”, especialmente esta que escrita jaz no túmulo do referido cientista Russo. No prólogo de A Condição Humana (1958), Hannah Arendt dá conta deste facto, alertando que as realizações da ciência afirmaram o que o homem tinha antecipado em sonhos — “sonhos que não eram loucos nem ociosos” — assim como a literatura de ficção científica à qual “ninguém” (?) deu a devida atenção. A reflexão de Arendt sobre a era moderna parte da averiguação histórica da distância entre o homem e o seu mundo, ideia que resume na expressão “ponto de vista arquimediano”: a utilização de um instrumento científico mediador que comprovava o que antes estava destinado à contemplação sensorial directa, não fez mais do que desvalorizar a aptidão dos sentidos para adquirir a verdade do mundo que lhe aparecia. Aqui “mundo” compreende a seguinte divisão postiça: o que foi dado ao homem (a natureza que existe sem o seu auxílio) e o que foi fabricado pelas mãos do homem (homo faber). O dito “ponto” deslocou de tal forma o homem que a alienação passou a ser o estado estimado e dirigente das fábricas dos homens. Por exemplo, a ciência moderna isolou a natureza, ou melhor, chegou a fabricá-la dentro dos laboratórios, herméticos a eventuais distúrbios. Talvez devêssemos reter um pouco mais aqui, pois tem de ficar claro que os instrumentos, ferramentas e utensílios foram feitos pelo homo faber para construir um mundo e não para com eles servir uma necessidade vital do humano. O exemplo mais radical desta alienação foi o exercício de abstracção matemática. O discurso dos signos, um dos instrumentos mentais mais importantes da ciência, revela-se tão longe da palavra através da qual os homens comunicam que permitiu a libertação espacial, material e terrena, pois, “em vez de observar os fenómenos naturais tal como estes se lhe apresentam, (o homem) colocou a natureza sob as condições da sua própria mente, isto é, sob as condições decorrentes de um ponto de vista universal e astrofísico, um ponto de vista cósmico localizado fora da própria natureza.”A tecnologia investida pela ciência moderna serviu para mostrar a verdade desse abstracto, e também mostra que é uma verdade disposta e composta. Mas, retirando as palavras a Arendt, “politicamente, o mundo moderno em que vivemos surgiu com as primeiras explosões atómicas.” Hoje, os instrumentos e o conhecimento sugerido por estes confrontam-nos com a possibilidade arcaica do homo creator: sim, esses zombies biotecnológicos que emergem da plasticidade e do controlo laboratorial anunciam de novo um fim e um princípio.